Entrevista com Luizpê

eitores, eis Luiz Antônio de Faria Pinto, o LuizPê, editor de arte do Jornal Pessoal, autor das charges que ilustram a publicação e irmão de Lúcio Flávio, este talvez o “cargo” mais difícil, a deduzir de suas palavras nesta entrevista feita pelas jornalistas Brenda Taketa e Rose Silveira. Luiz Pinto é o escracho onde seu irmão é o recato. E confessa: na família “só temos em comum o Faria Pinto”. Para ressaltar: “Há uma admiração mútua gerada nessas diferenças”. Dono de um traço refinado e certeiro, Luiz faz um relato bem humorado de sua trajetória artística e do trabalho no Jornal Pessoal nesses 25 anos da publicação. 

Conte-nos a respeito de sua carreira como desenhista e artista gráfico. Aliás, você também é músico, não é? 
Começou quando descobri minha total falta de habilidade com os pés; não conseguia fazer nem três embaixadinhas com a bola. Em compensação, me saía bem no vôlei e no espiribol. Ainda no primário, nos anos 1960 (o Fundamental de hoje), nos trabalhos de História, as cópias que fazia das gravuras de Rugendas e Debret, com lápis de cor, me levaram ao comércio do escambo. Eu desenhava para os colegas e eles copiavam as aulas para mim. Comecei a perceber que tinha jeito pra coisa e fui em frente. Na adolescência, o Lúcio me arrumou um estágio na Mercúrio Publicidade, de Abílio Couceiro, com o Walter Rocha na direção de arte. Ele que me apresentou às técnicas do desenho. No início dos anos 1970 veio o Bandeira 3 de A Província do Pará, com uma turma da pesada. 
Fui para São Paulo e fiquei uns três anos perambulando pelas redações da Veja, O Estado de São Paulo e alguns alternativos da época (Movimento, Opinião, Bondinho…) e numa agência de publicidade. Cheguei a frequentar a Escola Pan-americana de Arte, muito conceituada naquele momento (Ziraldo era um dos diretores). Voltei a Belém e fui fazer diagramação em O Estado do Pará (atual Diário do Pará). Nova viagem a Salvador (BA), para diagramar no jornal A Tarde e colaborar no Boca do Inferno, reduto alternativo de jornalistas e desenhistas “expulsos” dos centros do Sudeste pela ditadura, que empastelou o jornaleco, sequestrando muita gente pra Brasília. Rasguei para Belém e entrei para o conjunto musical Sol do Meio Dia, começando como cenógrafo e produtor do material gráfico, até me tornar músico componente.
No tempo do Bandeira 3, também participava do GAL – Grupo de Arte Livre, que reunia músicos, cantores, artistas plásticos, escritores, poetas e uma fauna de malucos. Eu acabei ficando responsável pela banda de apoio, que acompanhava os cantores – Fafá, Nilson, Vital, entre outros. A nossa sede era o prédio onde hoje é a Academia Paraense de Letras, na João Diogo, em frente aos Bombeiros, que de vez em quando invadiam para acabar com a zorra que a gente aprontava nas madrugadas.
Participei dos primeiros festivais estudantis, principalmente acompanhando Adélia Arruda (por onde anda?) com uma guitarra cheia de distorção. Toquei em alguns grupos de rock nos inferninhos da época. Elói Iglesias que o diga. Depois do fim do Sol do Meio Dia me aquietei emO Liberal, nos anos 1980, iniciando minha participação na charge diária, até que pedi para sair da redação, indo fazer a publicidade da casa, até ser demitido. Ainda nessa década toquei na noite e fiz parte da primeira formação do Pavulagem. Nos anos 1990 fiquei trabalhando em casa e, junto com a [jornalista] Socorro Costa, fizemos a história em quadrinhos do Círio e duas bonitas pessoas, que se somaram às três primeiras que eu já havia produzido. Meu último emprego foi na Gazeta Mercantil, fazendo bico de pena das personalidades e diagramação, aqui mesmo em Belém. Hoje vivo de frilas e de frias.

O Jornal Pessoal completa 25 anos, mas a sua participação no jornal começou bem depois. Como surgiu o convite para ser editor de arte do jornal? Na verdade, participei desde o início, quando o jornal ainda era impresso nas oficinas d’O Liberal, por força dos laços familiares. Afastei-me por uns tempos e, devido à força gravitacional, voltei.
Não é muito fácil. Seria como passar o dia na praia: das 6 às 9h é legal; agora, das 10h às 16h, é f*. Tenho fascinação pelo jornalista que o Lúcio é, e me irrita o irmão que tenho.

No texto escrito por você na edição especial de 25 anos doJornal Pessoal, você comenta que ainda pequeno percebeu “que aquele cara não era normal”. O que o diferencia e o faz uma pessoa incomum, na sua visão? Vocês estão falando do jornalista ou do irmão? Ou de mim? Brincadeira. Poderia resumir dizendo que ele é um estranho que conheço muito bem.
Todas. Aliás, na nossa família só temos em comum o Faria Pinto. Mas há uma admiração mútua gerada nessas diferenças.

No decorrer desses 25 anos de JP, você acompanha a batalha do seu irmão no judiciário e com grupos locais incomodados com a linha editorial do periódico. Diante de várias agressões e da própria perseguição política, qual sentimento prevalece? É a indignação perante tanta mediocridade.

Qual o momento mais tenso e o mais gratificante do trabalho com ele no decorrer desses anos? O mais tenso é o momento de fazer a charge, de olhar o papel (tela) em branco e materializar o que ele me pede. O mais gratificante é voltar para casa, depois de fechar o jornal na gráfica. Gratificante seria também a gente trocar de posição, pelo menos uma vez. Eu escreveria e ele faria o desenho.

Você já temeu ou teme por ele? O quê? E essas perseguições se estendem a você de alguma forma ou não?
Os inimigos do Lúcio têm dinheiro e poder, e essas drogas são perigosíssimas. Então, há sempre o risco. Sabe como é drogado… a parte que me cabe nesse latifúndio é um tanto quanto velada, às vezes acho que sou aquela má companhia que as pessoas evitam. Sei da qualidade do meu trabalho, sou muito criterioso com isso, mas me sinto um pouco deslocado do meio. Já quase desisti de conseguir emprego na minha área. A mim só resta o reconhecimento em outras plagas, mas sou avesso a competições. O quadrinho de autor pode ser uma saída. Tenho boas ideias, mas muitas dificuldades de concretizar. Sabe como é, mecenato cultural é raro. Mas vou tentando.

Se pudesse escolher qualquer coisa, tangível ou não, para presentear o seu irmão, o que seria?
Um prêmio lotérico. Montaria uma gráfica-editora para ele e me aposentaria.

Qual a recompensa de coproduzir o JP? Não ter o rabo preso.

Entrevista com Lúcio Flávio Pinto

Como o Jornal Pessoal se sustenta? Como é possível dar conta das necessidades e despesas familiares com um jornal feito de forma quase artesanal, sem colaboradores e publicidade? Quem compra o Jornal Pessoal? 
Lúcio Flávio Pinto – O Jornal Pessoal arca com seus custos. Eu, com os meus. Ambos vamos levando a vida na flauta. O jornal, ao excluir a receita de publicidade do seu universo, fez uma opção mais do que franciscana pela pobreza. Eu não tive alternativa senão partilhar a escolha. Ao menos enquanto o jornal existir. Quem o compra, em primeiro lugar, é quem pode pagar cinco reais pelo exemplar de um jornal pobre. Mas que o procura por seu conteúdo. É a classe média alta e média. Mas, felizmente, também há leitores nas camadas de renda inferior.

Para quem o assiste sem muito contato ou diverge de seus pontos de vista político, já que o jornal, como o próprio nome diz, é pessoal, fica uma pergunta: há colaboradores ou apoiadores financeiros do seu trabalho que não sejam publicamente declarados? Você omite ou omitiria informações e fontes nesse sentido? Lúcio Flávio Pinto – Tive um colaborador que me ajudava a pagar apenas as despesas de postagem de jornais que envio como cortesia para vários lugares do Brasil e do exterior, além de Belém mesmo. Essa pessoa não pôde manter essa ajuda. Como pediu sigilo, nunca revelei seu nome. Sem sua participação, tive que reduzir o número de cortesias, mas elas persistem. Essas pessoas se dispõem a pagar assinaturas, mas como não tenho condições de organizar esse serviço, envio-lhes gratuitamente os exemplares, porque sua leitura do JP é fundamental para mim. Elas me dão um retorno nacional e internacional. Um amigo compra 20 exemplares de cada edição e os distribui entre os amigos. Nunca houve alguém que financiasse ou ajudasse o JP em suas despesas, um mecenas.

Por que a inserção do Jornal Pessoal na internet ainda é tão tímida, se a maior parte dos seus leitores está na rede e encontra lá um espaço mais democrático para debater temas como liberdade de expressão? 
Lúcio Flávio Pinto – Por pura inibição minha. Tenho uma reação espontânea e quase automática a essa tecnologia. Aproximo-me dela através de amigos e do meu filho, Angelim, formado em ciência da computação. Sou um cego que ele guia pelo mundo virtual. No entanto, em todos os momentos de crise recorro intensamente à internet. Tem sido minha tábua da salvação nessas ocasiões. Seu poder de difusão e mobilização é estupendo, sem igual.

Se algo pessoal lhe acontecesse, como um escândalo familiar que de alguma forma envolvesse a cena pública, o jornalista, ou editor, seria capaz de transformar o fato em manchete do jornal? Acreditar ser possível separar o jornalista da pessoa? Se sim, a qual vínculo acreditaria ser provável manter a lealdade em um momento assim: à família ligada pelo DNA ou à reunida pela profissão no decorrer dos anos? Lúcio Flávio Pinto – Sempre fiz a opção pela profissão, desde o início da carreira, 46 anos atrás. Na crise que envolveu meu pai, em 1967/68, quando ele era prefeito de Santarém, o jornal no qual eu trabalhava então, A Província do Pará, lhe fazia oposição sistemática e nem sempre era correto no noticiário. Em certo momento, ocupei interinamente a secretaria do jornal, com 18 anos. Podia jogar a força do meu cargo para pelo menos conseguir maior isenção, mas nada fiz. Preferi ficar fora dessa cobertura, mesmo vendo a movimentação pela redação dos inimigos dele, que viciavam o noticiário. Papai não gostou muito da minha posição, mas a respeitou. Nunca hesitei em outros momentos que se seguiram e acho que manterei essa diretriz sempre.

Quem foram e ainda são os seus principais interlocutores nos debates realizados pelo jornal? Lúcio Flávio Pinto – Há leitores que me acompanham há décadas. Tive o privilégio de assinar coluna quando tinha três meses de profissão e mal havia completado 17 anos. Assim pude expressar minha opinião e fazer interpretações, além de noticiar fatos e relatar acontecimentos. Esses velhos leitores sempre dialogaram comigo, mesmo quando eu enviava meu material de São Paulo. Alguns nunca se manifestaram publicamente. Outros, de vez em quando, remetem suas cartas. Meu dialogo com as fontes é feito pessoalmente, o que muito me ajuda.

Você se sente só no exercício do jornalismo? Após a condenação que o obriga a indenizar o responsável por um megaesquema de grilagem na região, o que representou o movimento Somos Todos Lúcio Flávio Pinto, organizado em seu favor e responsável por manifestos de apoio e pela arrecadação de recursos para o pagamento da quantia? Lúcio Flávio Pinto – O movimento muito me sensibilizou e ainda me anima porque em nada dependeu de mim. Foi iniciativa espontânea, generosa e competente. Ajuda-me muito a não me sentir só. A sensação de solidão é muito forte nas dependências do judiciário e nos autos do processo. E impõe a sensação de que estou condenado a girar na quadratura do círculo, num movimento surreal, absurdo.

Além das ações judiciais, você já foi vítima de agressões físicas e verbais por parte de pessoas que se sentiram atingidas por seus artigos – para relembrar, em 2005 o empresário Ronaldo Maiorana, das Organizações Romulo Maiorana, apoiado por dois seguranças armados, o agrediu fisicamente e o ameaçou de morte dentro de um restaurante lotado; e há poucos meses, o juiz Amílcar Guimarães, que o condenou a pagar indenização aos herdeiros do grileiro Cecílio do Rego Almeida, o ofendeu em sua página pessoal no Facebook, fato que teve repercussão na imprensa e na internet, assim como o empresário Rodrigo Chaves, da empresa Progec, citado na denúncia de fraude cometida contra a Sudam por parte dos empresários Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana. Rodrigo Chaves também o agrediu verbalmente em um restaurante. O que ocorreu depois desses fatos e o que ficou para você dessas experiências? Lúcio Flávio Pinto – A agressão física é um dos momentos mais tristes na relação humana. É o desrespeito por parte do agressor, que tenta se impor através de um meio que ele julga ser o único para resolver diferenças: a violência. O agredido, quando não concorda com essa forma de resolução de litígio, precisa de muita força moral e de densidade ética para reagir à altura da ofensa sem se reduzir ao elemento animalesco que lhe tentam impor. É um momento trágico da condição humana. Felizmente tenho conseguido reagir diante dessas e de outras muitas agressões do passado de uma forma civilizada e ao mesmo tempo enérgica. Não aceito que violem meus direitos e defenderei minha dignidade até o fim, sem concessões. Meus agressores não devem ter ilusões: mesmo recorrendo ao ato físico, não me intimidaram. Causando danos à minha saúde e à minha condição financeira, decidi manter o meu jornal justamente porque qualquer outro destino que lhe desse poderia ser interpretado como rendição. O jornal já podia ter acabado. Seria seu destino quase natural diante de tantas dificuldades para se manter. Mas tenho feito tudo ao meu alcance para que isso só aconteça quando ele já não precisar mais ser um símbolo, uma bandeira de luta, de resistência.

Belém vive um dos seus piores momentos políticos, além de problemas como o crescimento desordenado da cidade, a violência, o trânsito caótico e a falta de saneamento básico. Você descreveu muito bem esse quadro no JP de nº 519. Como avalia a participação da sociedade civil nos momentos decisórios relacionados ao futuro da cidade? Pessoalmente, o que você espera das próximas eleições? Lúcio Flávio Pinto – Já declarei que vou anular o meu voto no primeiro turno. No segundo, vou escolher o “menos pior”. Belém deverá continuar sua trajetória de retrocesso. Não interessa quem tenha sido o prefeito nas últimas décadas: comparativamente, a cidade caiu de posição em qualidade de vida. É atualmente uma das piores capitais estaduais para se viver, se não a pior. A sociedade se desmobilizou e a opinião pública se desfez, amedrontada entre duas organizações de comunicações que se digladiam pelo controle do poder, sem admitir terceira via ou que lá seja de expressão social independente e autônoma.

O que é necessário renunciar para dar conta do trabalho? Do que o Lúcio abre mão para dar conta do empreendimento a que se propôs com o jornal? E que empreendimento seria esse, se puder definir? Lúcio Flávio Pinto – Praticamente abri mão da minha vida privada. O jornal só continuou a circular porque me transformei numa máquina de trabalhar, sem férias, quase sem lazer, sem o tempo necessário para cultivar os que amo e estão próximos de mim. Abri mão até dos meus projetos de maior envergadura, os que atendiam todos os meus anseios criativos, para dar conta do cotidiano, desse dia a dia incrível da vida na Amazônia. A conjuntura me sufocou, me impedindo de realizar alguns dos projetos que concebi ou deixei incompletos porque exigiam muito mais tempo e distanciamento.

Qual a recompensa de continuar, apesar de tantos processos judiciais e embates políticos, interpessoais, incluindo também a falta de apoio, reconhecimento e mesmo de liberdade para fazer o próprio trabalho? Em outras palavras: o que o motiva a continuar? Quais fatores, pessoas e sentimentos fazem valer a pena seguir adiante? Lúcio Flávio Pinto – A possibilidade de fazer parte de uma história única e grandiosa como essa da conquista da Amazônia, da sua ocupação, no velho sentido colonial, da imposição da vontade e dos interesses do colonizador. E a possibilidade única de romper essa lógica colonial, que devastou a África e a Ásia.

Já pensou em desistir em algum momento nos últimos 25 anos? Em qual? Lúcio Flávio Pinto – Várias vezes. É um pensamento recorrente. Quando fui agredido, estava com esse propósito. O desgaste de manter o jornal é grande.

Já se arrependeu ou lamentou algum ato ou fato decorrente do que acredita ser essencial ao trabalho? Lúcio Flávio Pinto – Lamentei ter-me desligado espontaneamente de O Estado de S. Paulo. Eu tinha 18 anos ininterruptos na empresa. Segundo a mística da “casa”, me tornara móveis e utensílios. Ficaria ali até me aposentar. Meu desligamento foi um ato de protesto pela desistência do projeto amazônico, pelo qual tanto me empenhei. Mas perdi a base de sustentação, que permitia minha manutenção financeira, e as condições para viajar pela Amazônia. Não me arrependi porque minha decisão foi correta. Mas lamentei as perdas.

Entre o que se perde com o tempo, do que e de quem sente falta, profissional e pessoalmente, seja pelos rumos que toma a própria vida ou mesmo em função do agir profissional? Lúcio Flávio Pinto – Foram muitas as perdas. As maiores são íntimas, pessoais, que convém guardar no lugar mais protegido do ser. Profissionalmente, sinto a perda do convívio nas redações e o processamento de fechamento das edições diárias dos jornais.

Se pudesse largar tudo hoje, o que você faria em seguida? Lúcio Flávio Pinto – Procurar nova forma de existência, de sobrevivência, de realização e de utilidade social. Depois de vencer o vácuo e a inércia, é claro. Não se passa de uma condição como esta em que me encontro para outra sem impacto.

Entrevista publicada no blog SOMOS TODOS LÚCIO FLÁVIO PINTO